Estamos vivendo a era dos “espaços digitais” onde caminhamos não mais versus-uno / em direção ao uno mas em direção à meta / ao metaverso.
Considere a sério, por um momento, esta noção de espaços-digitais e vamos voltar aos clássicos e consultar um dos maiores intelectuais a discutir o conceito de espaço, o brilhante geógrafo brasileiro Milton Santos, que nos idos dos anos 2000, escreveu:
“O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço.”
Porque o espaço, para Milton Santos era “um acúmulo desigual de tempos”. Tempo este que é vivido pelo sujeito de maneiras distintas também, porque as condições materiais do espaço qualificam o tempo de toda gente.
Pensando a partir desta premissa, este espaço onde nossos avatares circulam com rostos melhorados e opiniões bem concatenadas, acumula como os diferentes tempos? Aqui a sua fala precisa ter um único minuto.
O texto precisa ser longo, pra mostrar o que se sabe, e diário, porque o algorítmo se importa, semanalmente é aceitável, se você for um perfil medíocre. Aqui a falácia da meritocracia, a cobrança da performance e a dança dos egos em ped@ços é elevada à potência neoliberal, de um sistema que se adapta muito rápido e onde o “homem lento” de Milton Santos tampouco se adapta.
Aqui no Instituto D’Alma, que não fica no instagram, mas que circula todos os espaços, a partir da materialidade das condições do nosso tempo, a gente se pôs a perguntar: como lidar com o tempo neste espaço digital?
Pra além da questão de perder horas zapeando numa (perceba) LINHA DO TEMPO INFINITA, cada vez mais percebemos a sensação ilusória de que ocupa-se algum espaço maior na sociedade à medida em que mais conteúdo se produz para os meios digitais. O que a gente observa na prática e vive nos espaços físicos é que aprende-se muito mais ouvindo. Mas ouvindo como quem entra em contato com a fala de alguém e permite-se perder-se nela, deixando que esta se lhe atravesse o peito de um lado a Outro.
A psicanálise, tema central dos estudos no Instituto D’Alma, nos leva através do discurso do sujeito, à investigação de conteúdos emocionais inconscientes que suprimam os desejos do indivíduo. Como já nos esbarramos mais de uma vez com esta questão, basta dizer aqui, porque afinal é sempre bom reforçar, que a estrutura social externa ao indivíduo, incluindo a linguagem na qual este é inserido assim que nasce e com a qual precisa estar sempre às voltas para expressar-se, é muitas vezes determinante e fundante de sua própria subjetividade e de algumas de suas dores mais profundas. O sujeito só pode existir em relação a Outro, e em algum tempo e espaço. E neste sentido, investigar a origem de seus traumas pode ser o começo do processo de autoconhecimento de um sobre si mesmo, absolutamente indispensável para que se possa alcançar alguma realização dos próprios desejos, que é o de compreender-se, antes e primeiro, enquanto sujeito histórico.
Sobre os espaços digitais? É necessário considerar que impliquem, se são espaços, a dimensão do tempo. E a dimensão do tempo no neoliberalismo é uma discussão central do que vai desembocar (literalmente desembocar) no discurso do analisante na clínica nossa de cada dia e que muitas vezes vai esbarrar com conteúdos pessoais do psicanalista que para sustentar sua clínica no mundo neoliberal também é impelido a implicar tempo de sua vida a produzir um avatar que o circunscreva no espaço digital.
Neste espaço-tempo, porém, a linguagem muda tão rápido que o sujeito inserido nela de forma abrupta, como nos acontece a todos ao nascer, precisa adaptar-se a todo tempo. Na medida em que isto afeta as relações de trabalho sob as quais vivemos hoje, onde o indivíduo é levado a acreditar ser o único responsável pelo próprio sucesso profissional, onde a uberização chegou aos afetos diários, e onde nos defrontamos com uma eterna inadequação à métrica qualitativa do trabalho a partir de curtidas e seguidores, virais e flops de recortes ínfimos do pensamento mais complexo, é que torna-se ele mesmo, o sujeito, aqui enquanto avatar, distorcendo o termo de Milton Santos para o espaço digital, uma “rugosidade”¹ , isto é, uma estrutura que já não possui mais a mesma funcionalidade da proposta original. No espaço geográfico miltoniano, as rugosidades são estruturas que depõem sobre um momento histórico, como a grafia da subjetividade de outro tempo no espaço. Neste sentindo “formas antigas permanecem como a herança das divisões do trabalho no passado e as formas novas surgem como exigência funcional da divisão do trabalho atual ou recente.” - (SANTOS, 1982: 42).
Pensando sobre o fazer psicanalítico, sobre o trabalho (termo que Freud usava frequentemente para descrever a análise), sobre a produção de teorias psicanalíticas que deem conta de compreender as dores emocionais de um sujeito que existe a seu tempo em vários espaços, e pensando sobre o próprio reconhecimento do psicanalista enquanto sujeito, que é sujeito de e que está sujeito a seu contexto histórico, o que gostaríamos de propôr como reflexão à comunidade é a de que qualificar nosso próprio tempo e grafar nossos sujeitos nos espaços de forma lenta e por escolha própria, partindo do tempo do próprio desejo e subvertendo a linguagem talvez seja uma solução prática anti-neoliberal e psicanalítica de usar as ferramentas digitais como quem não ignora as relações de trabalho, as disputas de poder, as identidades, os discursos e a dimensão temporal implicadas nesta espacialidade que precisa ainda ser conceitualmente compreendida e explorada. A dialética entre fala-escuta, entre produção-consumo, entre ensino-aprendizagem, precisa ser pensada por nós, e não pelos criadores do algoRITMO.
Na falta de Milton Santos ou de Freud e sua turma, a gente convoca os sujeitos históricos da comunidade D’Alma a pensar e produzir teoria sobre o inconsciente, em tempo, para além dos espaços digitais, onde o fazer lento possa geografar na história os desejos de nossos seres e nossas contribuições teóricas e profissionais à psicanálise enquanto disciplina humana.
Para além do tempo e do espaço, no não-lugar, acontece a transferência, a fala e a escuta, mas é sempre em cada aqui e em cada agora que a vida se dá.
A significação que damos a cada coisa que se conhece é o que muda inclusive a coisa em si, e quem a observa.
Resignifiquemos pois nosso ser no espaço-tempo do conteúdo profundo e lento que tenha em si ou que traga consigo algo que faça sentido no momento. É conhecendo que se produz conhecimento.
Ocupemos conscientemente este espaço (tempo) e pelos corredores digitais ou não da escola de psicanálise, filosofia e arte, mais vanguarda de São Paulo, em breve nos vemos.
Notas: ¹-Milton Santos reciclou o conceito de rugosidade a partir das ideias do geomorfólogo
francês Jean Tricart (1920-2003) que foi seu orientador no período que estudou na França.
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